A Primavera Brasileira tomou corpo e rosto, finalmente. Já sabemos o que ela é. Trata-se da revolução do indivíduo.
As manifestações imediatamente anteriores ao Golpe de 1964 eram antes de tudo protestos empurrados por disputas de governos estaduais contra o governo federal. Em 1968 não foi muito diferente. Os estudantes foram às ruas, mas sob a sombra da Frente Ampla, comandada pelos caciques dos novos e velhos partidos. Quando da Campanha das Diretas, o mesmo se deu. A população tinha a sua força espontânea, mas a organização dos eventos de protesto nunca saiu das mãos dos governadores, então já eleitos diretamente. No Fora Collor, o melhor palanque foi o de Jô Soares e o movimento realmente foi, inicialmente, a partir dos “cara pintadas”, mas ganhou força por meio da articulação dos partidos de oposição e dos sindicatos.
Nos protestos atuais o canal é o Facebook e o Twitter e o que ecoa online é apenas o “vamos desorganizar para ver se conseguimos reorganizar do nosso jeito”. No ponto de partida e no ponto de chegada está o indivíduo falando para outros indivíduos. O suprassumo da doutrina liberal inventada no final do Renascimento põe seu estilo na passarela paulistana e de outras capitais. Ninguém está mediando nada ou pensando em ações futuras. Porque só um doido varrido planeja a desorganização. A desorganização não é a demolição, que pode ser planejada, a desorganização é a desorganização.
Mas a desorganização tem um preço que a demolição não tem. Nela, o futuro nem mesmo a Deus pertence.
Aos poucos tudo vira motivo para se achar que alguém organiza alguma coisa, e esse tipo de pensamento surge na cabeça de cada manifestante por conta do excesso de politização que corre nas veias da juventude brasileira, sempre tomada pelos conservadores e pelas lideranças partidárias, mesmo de esquerda, como despolitizada. O excesso de politização leva alguns a acreditarem que estão em meio a uma revolução de tipo clássico, uma vez que ninguém sabe direito, de fato, o que seja uma “revolução de tipo clássico”. Então, os próprios passos de cada indivíduo participante começam a ficar suspeitos: “será que a Rede Globo passou a apoiar o movimento?” ou “A Globo apoia, então o movimento vai ser jogado contra a Dilma, como algo de direita?” ou “Mas a Record também apoia, e ela é Lula!” ou “Há manifestantes que levantam cartazes de direita no interior dos protestos, serão eles ou serão os anticapitalistas de esquerda que tentaram alguns atos mais ousados de depredação?” ou “Será que Dilma vai, no limite, chamar seus antigos algozes para reprimir o povo?”
Tudo isso é passado de indivíduo para indivíduo alimentando as minhocas que os excessivamente politizados sempre carregam em suas cacholas. No meio disso, os gastos com a Copa e outras estripulias dos governos federal, estadual e municipal, em todo o Brasil, começam a vir à tona, causando raiva e indignação até mesmo na parte da população que, em princípio, estava contra os protestos. Aumenta o número de pessoas insatisfeitas com os políticos em geral.
Ninguém suporta pagar as coisas muito caras e ao mesmo tempo sustentar a confecção de caxirolas. Ninguém suporta ver os políticos de todo tipo viajando para Paris e muito menos os desmandos que ocorrem em todos os executivos. Ou seja, os governantes fizeram o que Fernando Collor fez: cutucou a onça com a vara curta, mexeram com os brios dos brasileiros à medida que criaram a situação de desmando. Os governantes foram e são os autênticos vândalos. E o vandalismo devolvido pelos indivíduos é reduzidíssimo em comparação ao que esses descarados continuam fazendo nos governos. Dilma sabe disso. Lula sabe disso. O PSDB sabe disso. Fernando Henrique Cardoso, lá em Higienópolis no seu confortável apartamento, ri de tudo isso. Aliás, de certo modo, ela está pouco se lixando até mesmo para o futuro do PSDB.
No momento em que escrevo Dilma vai se reunir com Lula para saber o que fazer diante da revolução do indivíduo. O PT terá de cumprir o seu papel histórico, o de reprimir a Primavera Brasileira e restaurar “a ordem”. E se isso acontecer, vocês verão como eles aprenderam a fazer tal coisa, do mesmo modo que aprenderam a roubar. Tanto fumaram o cachimbo dos adversários, os homens da Ditadura Militar e de outros partidos, que acabaram de vez ficando com a boca torta. O mensalão será uma mancha pequena na história do partido.
É significativo que Lula, fundador do PT, e Dilma, herdeira de Brizola, tenham que chegar a pensar até em bater na porta dos quarteis para interromper a revolução do indivíduo, a Primavera Brasileira. Quem vier a escrever essa história, depois, saberá que os gregos deram todos os instrumentos para tal, há mais de 2.500 anos. A revolução do indivíduo poderá nos dar uma tragédia grega. Caso não, o “desorganizar para tentar reorganizar do nosso jeito” passará. Veremos então se podemos mesmo reorganizar, e de qual jeito.
© 2013 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
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