“O resultado é Hitler eleito, Collor eleito, o povo súdito de um estado assim comandado.”
Sitônio Pinto*
O estado é a antítese do povo, assim como o cidadão é a antítese do homem. O cidadão é súdito do estado, enquanto o homem é súdito da natureza. Este é real; aquele é misto de realidade com ficção, um ser que passou por debaixo do arco-íris e mudou de sexo cívico: era homem e virou cidadão. Mas, por suprassunção, não perdeu de todo a primeira natureza – sobre a qual vestiu a máscara de tragédia da cidadania.
Em escala, é o que se dá com o povo: é múltiplo do homem, até que se lhe colocam as algemas da lei e ele passa a se reger por códigos, leis maiores e menores, a obedecer a autoridades que ele pensa que elegeu só porque votou no candidato vitorioso, quiçá da oposição. Será que ele, o povo, participou da convenção, será que financiou a campanha milionária do candidato eleito com o voto da maioria tão desprezada por Platão?
O discípulo predileto de Sócrates queria que se convocassem filósofos para resolverem os problemas da política – a mais difícil das artes, a que entretece o tecido social. Mas chamam a todos (menos os escravos, eles não tem cidadania) para opinar sobre política. O resultado é Hitler eleito, Collor eleito, o povo súdito de um estado assim comandado, o cidadão na fila que caracteriza a urbe: a fila do caixa, do ônibus, da saúde.
Eu disse “do ônibus”. Foi preciso o estado mexer no bolso do povo por meio de um reajuste pífio da passagem dos ônibus, Brasil a fora e adentro, para que o cidadão voltasse a sua origem de homem e se revoltasse contra a medida. E a medida completou a medida, e todas as reclamações vieram à tona: a saúde, a educação, a segurança, a corrupção, o superfaturamento. O bolso do povo já estava esgotado por aumentos pífios e se rebelou contra mais um.
Por que o povo não aceitou o circo oferecido na forma de estádios monumentais para a Copa das Nações, a Copa do Mundo e as Olimpíadas? Entre outros motivos, porque o povo não pode pagar os preços exorbitantes que estão sendo cobrados pelos ingressos nesses estádios, preços que vão a quatrocentos reais. Depois, o povo soube que os estádios custaram fortunas, bilhões, dizem que 28 bilhões, que foram superfaturados e pagos com seu tributo suado e sangrado.
Foi por isso que a Presidente da República foi vaiada na tribuna de honra, com o Estádio Manuel Garrincha lotado – não pelo povo, que não pôde pagar o bilhete, mas pela burguesia de Brasília e adjacências. Porque nem a burguesia agüenta mais; ela é mais consciente que o povo – se não sofre o que sofre o povo, tem a informação e formação que não tem o povo. A burguesia é o povo fantasiado de gente; ela também é súdita do estado, mas é a primeira que se rebela.
A Revolta do Passe Livre começou de maneira curiosa: a burguesia vaiando a Presidente no estádio, do lado de dentro; e, do lado de fora, o povo protestando – manifestando-se, como estão a dizer. Outrora, manifestar-se era estar possuído por um espírito desencarnado ou mesmo das profundas. Mas, agora, é uma forma de protesto. Os noticiários insistiam que a manifestação era pacífica. O povo não tinha armas, elas foram entregues ao estado após o Estatuto do Desarmamento.
Só no Rio de Janeiro uma centena de milhar de manifestantes manifestados (sim) foram às ruas, de mãos nuas. E se esse povo ainda tivesse as armas? Mas as garruchas e as espingardas foram entregues à autoridade após o Estatuto, feito com este objetivo: submeter o povo. O povo ficou de mãos vazias, por isso que só atirou pedras.
*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta e publicitário