Sitônio Pinto*
Na véspera do Carnaval, morre Paco de Lucía. Aos 66, em Cancun, Mexico, à beira-mar, pegando uma praia com seus filhos e netos. Enfarte fulminante. Prefiro dizer como antigamente: morte instantânea. Ou súbita. É possível que Paco estivesse feliz, com seus familiares, curtindo o mar numa boa. Ele merecia. Melhor morrer assim de que se tivesse ficado com a mão paralítica, naquele acidente em que cortou o tendão do braço quando a corda do violão se partiu ao ser afinada. Mas o guitarrista se recuperou, graças aos deuses. E tocou mais alguns anos para deleite do mundo.
Paco tinha ascendência portuguesa pela banda materna. Era filho de uma cantora chamada Lucia, ou Lucía para quem quiser. Usava o apelido da mãe, como o português Carlos do Carmo, filho da cantora Lucília do Carmo. Ao lado de Django Heinhardt, Henrique Morente e de Manitas de Plata (Ricardo Baliardo), foi um dos difusores do flamenco mundo afora. Era um virtuoso da guitarra espanhola (pode chamar de violão), como Severino Sivuca era do acordeom, digo, da sanfona, e Radegundes Feitosa era do trombone.
“Bendita sea la rama / que al tronco sae/, diz a canção conhecida por “Morena Salada”, tradicional. Em português do Brasil, temos uma expressão semelhante: “quem puxa aos seus não desunera”. Ou “filho de peixe é peixinho”, ou ainda “tal pai, tal filho”. Paco (Francisco Sanchez Gomes) era filho de Antônio Sanchez, com quem aprendeu a tocar guitarra. Teve ainda como professor o irmão mais velho, Ramón. E fez dupla com seu irmão mais novo, Pepe. Tinha de ser músico, estava “en la sangre”. Será que esse “Gomes” de Paco é o mesmo de José Gomes da Silva, o nosso Zé Moscou, um dos heróis da resistência civil à ditadura milicar? E do fundador da Paraíba, Duarte Gomes da Silveira?
Esses virtuosos morrem cedo. Radegundes, Sivuca, Sevy, Paco. Mas o grande Manitas ainda está vivo, aos 93 anos. Benza-o Deus para não murchar. Manitas chegou à Nova York para uma apresentação e não pôde ler o cartaz que tinha seu nome na porta do teatro. Só viu que era com ele por causa do retrato: Manitas é completamente analfabeto, não conhece o ó nem o dó. Será que o analfabetismo é um fator de longevidade? Dizem que não, pois o crescente aumento da longevidade no Brasil é atribuído, entre outras coisas, à redução do analfabetismo.
Dizem que Paco também não sabia ler música. Uma coisa difícil de entender, ouvindo-o tocar com as sinfônicas europeias, principalmente o “Concerto de Aranjuez”, em que era mestre. Dizem ainda que seu autor, Joaquín Rodrigo Vidre, afirmou que a interpretação de Paco foi a melhor que ouviu. Mas, por que será que eu, apesar de ser analfabeto musical como Paco e Manitas de Plata, não consigo tocar nem reco-reco? Tive um reco-reco quando era menino, mais um cavaquinho, uma corneta, um realejo de boca, um tambor, uma flauta, uma gaita, vários apitos, mas não aprendi nenhum desses instrumentos. O jeito vai ser estudar música. Dará tempo?
Dia desses vieram me dizer que um dia a morte seria superada, ninguém iria mais morrer. Você se lembra daquele porto-riquenho Emiliano Mercado del Toro, herói da Primeira Guerra Mundial, que morreu aos 115 anos? Emiliano vivia pedindo a morte, pois dizia que estava cansado de viver, que sua geração já havia morrido. Esse último argumento pesa muito: viver só com os entes queridos também vivos, para não se caminhar de banda feito Drummond: “do lado esquerdo carrego meus mortos; por isso, caminho um pouco de banda”. Mas a longevidade, ou a perpetuidade, seria para gregos e baianos. Para não acontecer como a Oscar Niemeyer, que, entrevistado aos 104 anos, disse que a vida, àquela altura, era um abacaxi. Não, ele não disse isso, disse um palavrão. Niemeyer pode dizer, eu não.
*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.