“O oficial não mandou baixar o cacete, nem soltar bombas de gás; ele ordem de “fogo”
Otávio Sitônio Pinto*
– Vi o Golpe –, me disse Bau, vulgo Giovani Montenegro. Ele arranjou esse nome nas peladas de futebol, por conta de Bauer (vulgo José Carlos Bauer), o volante brasileiro da Copa de 50. Aquela Copa que o Brasil perdeu no Maracanã, como pode perder esta, depois de ter goleado todas as equipes com quem jogou. Barbosa, Augusto, Juvenal; Bauer, Danilo, Bigode; Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico pareciam uma equipe invencível. Até hoje, ninguém conseguiu explicar como aquela esquadra perdeu a partida que jogava pelo empate.
Mesmo sem ganhar a Copa Ademir foi o artilheiro do certame, vestindo a camisa 9. Era o Pelé daquele tempo. Ou o Garrincha, se preferem. Ou Pelé foi o Ademir do depois. Bauer garantia o meio-campo, capitão de todas as equipes em que jogou, tamanha era sua liderança. E Giovani não fazia por menos, daí o nome de guerra, Bau, firmado nas peladas e nas mesas do PC do Bar. Principalmente o Bar de Leodécio, ou Casa dos Frios – a choparia que ficava a pouca distância da Igreja da Misericórdia, onde estão os restos mortais de Duarte da Silveira, fundador da Capitania Real do Paraíba (sic).
Bau foi cassado e demitido da Chesf, para ser readmitido anos depois, com a redemocratização, devidamente indenizado. Mas antes testemunhou o Golpe Militar de 1964, segundo me contou, o que repasso ao leitor pelo preço da fatura:
“Vi o Golpe. Eu estava no Recife Velho, perto da Pracinha do Diário, quando chegou uma passeata de estudantes. Iniciaram um comício. Pouco tempo depois desembarcou dos caminhões uma tropa do Exército. O oficial no comando da operação mandou os estudantes se dispersarem, no que não foi obedecido. Então, deu voz de comando à tropa: “preparar, apontar…”. O oficial não mandou baixar a cacete, nem soltar bombas de gás; ele deu ordem de “fogo”. Alguns estudantes tombaram.
“Quando a fumaça dos tiros se dissipou, chegou um sujeito magro, moreno claro, de seus trinta e cinco a quarenta anos, de paletó. Ele ficou entre a tropa e os estudantes perplexos. O de paletó gritou: “Covardes! Atirando em jovens indefesos!” Foi a vez de a tropa ficar perplexa, e os estudantes se retiraram, levando seus mortos e feridos.
“Procurei sair daquela fria, enquanto era tempo. Avistei um jipe da Chesf, com seu motorista ao volante. O chofer era um sujeito forte, avantajado, com fama de valentão, que fumava charutos. O motorista estava pálido, boquiaberto, os olhos esbugalhados, sem reação, inerme. Lá na frente, a tropa com baionetas caladas, os estudantes também calados, sem chorar, recolhendo suas vítimas. Abordei o chofer:
– Com quem você está?
“O homem permaneceu calado, os olhos calados, o toco do charuto caído aceso entre suas pernas, um fio de fumaça subindo de suas virilhas.
– Com quem você está, homem? Insisti.
“Eu queria saber com qual funcionário o motorista estava naquela missão, pois pretendia sair no jipe providencialmente estacionado na trágica paisagem.
– Fale, homem!
“E balancei o ombro do colega pasmo, silencioso.
“O afrodescendente gaguejou:
– Estou com Nosso Senhor Jesus Cristo e as Forças Armadas…
*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.