“O mal estar aumentou pelo fato dos índios terem sido presos quando atendiam a chamado das autoridades”
Otávio Sitônio Pinto*
Sete índios estão presos no Rio Grande do Sul, em Faxinalzinho, a 453 km ao norte de Porto Alegre – o antigo Porto dos Casais, da época da colonização. Ou o tempo da colonização não passou? Os índios foram presos como acusados de matarem dois brancos – os irmãos Anderson e Alcemar de Souza. A morte dos invasores se deu a 28 de abril deste ano. Os brancos são invasores históricos daquele espaço. Quando os índios chegaram à América, não havia ninguém na terra das palmeiras. Eles tomaram posse da terra sem violência, sem expropriá-las de quem quer que fosse. Depois, chegaram os brancos barbados. Tomaram seu chão, mataram seus varões, fizeram suas cunhãs de escravas sexuais.
Os sete índios da tribo kaingang não estão respondendo ao inquérito em liberdade, como os brancos têm direito. Quiçá porque os índios não façam jus a Lei Fleury – não tenham endereço reconhecido, nem profissão, e porque ofereçam periculosidade. A Lei Fleury foi votada às pressas, durante a ditadura militar, para evitar que o delegado Sérgio Paranhos Fleury, um notável torturador, fosse para a cadeia, acusado de ter exterminado algumas dezenas de presos comuns. Um desses presos fingira-se de morto e escapou. Depois, abriu a boca. “Foi Fleury”, disse o sobrevivente do massacre.
E o Congresso votou uma lei para o torturador e exterminador não ir para a cadeia. Há 26 anos que a ditadura terminou e a lei continua em vigência. Ela reza que o acusado de crime responderá ao inquérito em liberdade, desde que não tenha antecedentes, mas endereço e profissão, e não constitua obstáculo ao desenrolar do inquérito ou processo, nem represente ameaça às testemunhas.
Os sete kaingangs estavam participando de uma reunião na Câmara Municipal de Faxinalzinho, convocados pelas autoridades, para se resolver um conflito de terras entre a tribo de índios e a tribo de brancos. Foram presos pela Polícia Federal, em cumprimento a um mandato de prisão da Justiça dos brancos. A pendência envolve 2.700 hectares de terras em Faxinalzinho, onde moram 2.587 caras pálidas. Na reserva invadida, habitam, há milênios, 1.500 índios.
O mal estar aumentou pelo fato dos índios terem sido presos quando atendiam a chamado das autoridades – inclusive do Ministério Público – como se tivessem caído numa arapuca. Entre os presos está o cacique da tribo kandóia, Deoclides de Paula. Os índios haviam feito uma convocação de milhares de indivíduos, para protestar contra as prisões, mas desistiram, para não acirrar os ânimos.
Eram mais de 1500, antes de serem mortos e escravizados pelos invasores. No começo, eram só portugueses; depois chegaram outros europeus – italianos, alemães, espanhóis – e árabes e judeus, e uns poucos escravos negros (o Rio Grande do Sul tem apenas 2% de negros na sua composição étnica, o mesmo percentual da Amazônia).
Os caras-pálidas foram buscar escravos até no aldeamento de Sete Povos das Missões, uma reserva criada pelos jesuítas no noroeste do Rio Grande do Sul, não muito longe da área em disputa. Na sua maioria, os índios eram guaranis – etnia que se estende por todo o sul do Brasil, Mato Grosso, Paraguai, Uruguai e Argentina. Seu idioma é do mesmo ramo linguístico do tupi, o que deu origem à expressão equivocada de “tupi-guarani” como a língua falada por índios do Brasil e dos países platinos.
Não só a área de Faxinalzinho, mas todo o território brasileiro foi tomado violentamente aos índios. Os terrenos do Congresso, dos Palácios da Alvorada e do Planalto, dos tribunais superiores, das embaixadas, da Catedral de Brasília, todos pertenciam aos índios. Antes dos europeus chegarem, exatamente mil povos indígenas ocupavam Pindorama. Hoje, só restam 182 etnias. Foram exterminados 818 povos. O genocídio continua, e os caras-pálidas querem indenização pelas áreas que tomaram aos índios. Só falta cobrarem a munição que gastaram para matar os legítimos senhores da terra.
*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.