“Ainda bem que ela arranjou uma vaga no corredor”
Otávio Sitônio Pinto*
Você que entende destas coisas, já fez o cálculo de quantos hospitais dá pra fazer com a verba da construção de um estádio de futebol, desses que estão chamando de arena, padrão Fifa? Dizem que mais caro que o prédio é o equipamento. Pois, com equipamento e tudo, quantas arenas dá pra fazer? Mesmo com os hospitais superfaturados, como soem no Brasil? As arenas também são superfaturadas; fica, assim, uma coisa pela outra.
No Brasil, corrução é um fenômeno cultural. Assista a um jogo de futebol e preste atenção a quantas vezes o locutor diz a expressão “roubou a bola”, quando um zagueiro toma a bola de um atacante. Antigamente, o zagueiro desarmava o adversário; hoje, ele rouba. E isso é meritório; o zagueiro, ou o volante, deve roubar a bola do ponta-de-lança que invade a área e se prepara para chutar o gol. Bola roubada e os hospitais, que deveriam ser construídos com a verba da arena, ficam por fazer quando Deus der bom tempo. Mas chove nesta manhã.
Enquanto isso, crescem as filas nos hospitais de Pindorama. Pacientes entulhados nos corredores, à espera que morra um para que seja ocupada a vaga deixada com o leito ainda quente. É assim que Francisca está no corredor do Hospital Ortotrauma de Mangabeira, vulgo“Trauminha”. Ainda bem que ela arranjou uma vaga no corredor. Com o prestígio de um parente ilustre, ganhara um leito na UTI. Mas precisou fazer um exame de imagem e foi conduzida para um laboratório. Quando voltou, uma hora depois, sua vaga na UTI havia sido ocupada.
E Francisca voltou para o corredor, para a mesma maca estreita e quebrada, sem amparo lateral, vendo a hora cair. Ela tem de ficar o tempo todo sob observação de um acompanhante, para não despencar no abismo. Não há cadeiras nos corredores, e é proibido levá-las. Azar dos acompanhantes, que têm de ficar dia e noite em pé, pastorando o doente.
O hospital está com a lotação completa, e os outros nosocômios da cidade também. A direção do pronto socorro já telefonou para as outras casas de saúde e não há vagas em lugar nenhum. O jeito é esperar que morra alguém, todo dia morre. O diabo é que tem vários candidatos a leitos, um óbito só não vai resolver. E não adianta morrer o paciente que está esperando, pois a lista de embarque é longa – como na Guerra de Canudos e na frente russa da Segunda Guerra Mundial, quando havia mais combatentes que fuzis. Quando um morria, outro assumia.
Um dia, eu fui uma noite ao Trauminha de Mangabeira acompanhando um paciente acidentado de moto. Quando entramos no hospital, faltou luz. E ficamos esperando que a luz voltasse para que se fizesse uma radiografia no traumatizado. A luz demorou horas a chegar, o jeito foi mandar comprar sanduíches. Comemos os cachorros e a luz a não chegava, só veio lá pra meia-noite.
Assim como o acidentado que acompanhei (não fui eu que derribei o cara), metade dos atendidos nos hospitais brasileiros são acidentados de motocicletas. Eles são uma raça caroável a quedas e atropelamentos. Em Nova Iorque era assim, mais que no resto do mundo, porque a cidade é uma das maiores deste mundo e lá corre rios de dinheiro. Até que o prefeito resolveu acabar com a nação de motoqueiros, proibindo a circulação de motocicletas no perímetro urbano. De repente, as vas nos hospitais apareceram – pois a metade era ocupada pelos kamikazes do trânsito.
Os hospitais não têm leitos, mas a cidade tem hospitais fechados e entreabertos. Na avenida João Machado o Hospital Santa Paula espera a vez de ser reativado. Está faltando o quê? Era um bom hospital, eu mesmo fiz quatro cateterismos lá, onde botei um “stent” – aquela molinha que se coloca dentro do coração para ele não fechar como os hospitais. O Santa Isabel funciona a meia-força. Chove na manhã, e eu fico pensando como estará Francisca no corredor, com aquela goteira.
P.S.: Francisca conseguiu vaga.
*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.