“No Rio Grande do Sul, é Lei: o traje típico pode ser vestido em qualquer cerimônia oficial”
Otávio Sitônio Pinto*
Um grande encontro da música popular brasileira esse de Yamandu e Dominguinhos, tocando Asa Branca e Prenda Minha, duas peças folclóricas da maior importância. Os fãs de Gonzaga, mais realistas que o rei, insistem que a peça é do sanfoneiro do Exu. Mas ele próprio revelou que Asa Branca é folclore. Outra vez, Gonzaga disse que não sabia se Asa Branca era folclore, pois algumas de suas peças foram tiradas ao folclore, enquanto outras viraram folclore.
Mais recentemente, um biógrafo atribuiu a Gonzaga a coleta e o retoque em Asa Branca. O Rei já havia dito que recebera a peça via Zé Dantas, e que Humberto Teixeira dera-lhe “uns retoques”. Lembro-me que Chiquinha Gonzaga levantou a questão, quando disse à imprensa que Asa Branca era de seu pai Januário. Procurei um folista mais velho que Januário, e lhe perguntei de quando conhecia Asa Branca:
– Desde menino –, respondeu-me o patriarca. Sua palavra era inquestionável. Depois vieram as declarações de Gonzaga, contestando a irmã, de que Asa Branca não era de Januário, e sim folclore.
Hoje, escutei a peça no violão de sete cordas de Yamandu, acompanhado por Dominguinhos na sua “gaita piano” – como chamam os gaúchos à sanfona com o teclado da mão direita similar ao piano. A outra, com o teclado de botões – como o da mão esquerda – no Rio Grande do Sul é chamada de “gaita botoneira”. Se as gaitas forem os tradicionais foles, ambas serão “gaitas de duas conversas”, pois emitem duas notas diferentes com a mesma tecla pressionada, quando o fole é aberto ou fechado.
Ambas serão gaitas diatônicas, dirão os eruditos. O fole de oito baixos, tocado no Nordeste, é um instrumento diatônico – pois cada tecla emite duas notas diferentes, quando o fole é aberto ou fechado. É isso que caracteriza o fole, e não seu tamanho ou número de teclas – que podem ir até trinta e duas.
Em Minas Gerais, esse fole será chamado “cabeça-de-égua”. No Nordeste, “pé-de-bode”. O fole “pé-de-bode” será o de oito baixos, pois os cascos do bode são repartidos ao meio, formando, assim, oito cascos, como os foles de Januário, do meu avô Gratulino e de Dedé do Cantinho, bisavô de Lucy Alves. Em qual pé de serra andará o fole de meu avô, perdido no sertão de Misericórdia, hoje Itaporanga?
Quem quiser ouvir Asa Branca e Prenda Minha, tocadas pelo talento de Yamandu e Dominguinhos, é só abrir o fole do YouTube: os dois aparecem com todo gás, tocando algumas peças da melhor música brasileira. Eles misturaram Asa Branca e Prenda Minha numa só apresentação, Asa Branca vestida de poncho e Prenda Minha envergando gibão, ambas “pilchadas”. É assim como os gaúchos chamam a quem está vestindo botas, bombachas, poncho, lenço e chapéu, isto é, sua roupa completa.
No Rio Grande do Sul, é Lei: o traje típico pode ser vestido em qualquer cerimônia oficial, como fazia o paraibano Assis Chateaubriand com o gibão de couro do vaqueiro nordestino. Mas esse prestígio da “pilcha” deve-se a um catarinense, o cantor e compositor Pedro Raymundo, natural de Imaruí, do litoral de Santa Catarina. Pedro Raymundo era pescador de tradição, filho de pai também pescador.
Imaruí fica numa região lacustre à beira-mar. Pedro Raymundo deixou a pesca para ser maquinista de trem. Depois foi motorneiro de bonde em Porto Alegre, onde se profissionalizou como músico, evoluindo na sanfona e cultivando a música rural gaúcha. Nos espetáculos, ele se apresentava “pilchado”, ou seja, vestido de gaúcho até a alma. Isso lhe proporcionou sucesso, o que chamou a atenção de Luís Gonzaga. E o pernambucano passou a se apresentar vestido de vaqueiro e a cantar o repertório nordestino, e a contar causos como o gaúcho. Até então, Gonzaga só tocava (pois não cantava) boleros, blues, valsas, polkas, mazurcas. O próprio Gonzaga reconheceu que Raymundo lhe mostrou o caminho do sucesso.
Pedro Raymundo foi o primeiro a gravar Prenda Minha, em 1945. Dia desses errei, quando atribuí a Pedro Raymundo a autoria de Prenda Minha. Cometi outro erro, ao dizer que Pedro Raymundo tocava uma gaita piano: era botoneira. O mais você pode ver, Douto Leitor, chamando o YouTube, com Pedro Raymundo, Yamandu e Dominguinhos tocando música brasileira. Dê lembranças. (Continua.)
*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.