“Quem seria o cavaleiro da mula tordilha, “moreno y alto”? Os quatro muleiros terão alguma coisa a ver com os quatro cavaleiros do Apocalipse (6:2)?
Otávio Sitônio
A rigor, forró não é um gênero musical, mas o evento em que se tocava, cantava, dançava e bebia. O termo é a redução de forrobodó, possivelmente uma palavra composta, em que o cariri “bodó” (água) entra com seu significado de bebida. Não aceito a interpretação dada à origem de “forró” como do inglês “for all”- para todos -, evento que os construtores da estrada de ferro Great Western promoviam para seus trabalhadores e o povo em geral. E o “bodó”, como fica?
A palavra surgiria como um híbrido de cariri com inglês, difícil de se aceitar. Na virada do século XIX para o século XX, a expressão “forrobodó” já era popular no Rio de Janeiro, onde Chiquinha Gonzaga criou uma música para uma peça teatral (burleta) com esse nome, muito longe da Great Western, de Luiz Peixoto e Carlos Bettencourt.
Hoje, o forró está sendo usado para denominar a música dançante do semiárido nordestino, ou mesmo das regiões mais próximas do litoral, como é o caso do rojão de Jackson do Pandeiro. Assim acontece com o flamenco, um gênero que abraça muitos estilos, oriundos do encontro dos elementos árabes, judeus, ibéricos e ciganos.
O flamenco é o forró da Espanha. Os urbanoides espanhóis não o aceitam bem, pois se trata de música rural. Mas, depois de sua consagração por pesquisadores como Garcia Lorca e, modernamente, pelo maestro Henrique Morente, o flamenco tem ocupado lugar de destaque na música popular ibérica.
A Rússia tem “Olhos Negros”, os Estados Unidos tem “Summertime”, o Brasil “Asa Branca”, a Espanha “Los cuatro muleros”. A canção recolhida e resgatada por Garcia Lorca é um momento de grande beleza, sensualidade e humor da música folclórica espanhola. Sua letra, de extrema simplicidade, é um momento de grande felicidade poética, obtida com a repetição quase igual de um mesmo verso, tendo por eixo “el de la mula torda”, um sedutor fatal que “me roba el alma” ao eu lírico da cantante. Muitas foram elas, com especial destaque para Ana Belén e Estrella de Morente, filha do maestro Henrique Morente, um dos músicos que resgatou o flamenco para o mundo.
Quem seria o cavaleiro da mula tordilha, “moreno y alto”? Os quatro muleiros terão alguma coisa a ver com os quatro cavaleiros do Apocalipse (6:2)? O da mula torda destaca-se dos outros três na repetição do verso ao longo da canção. As mulas dos outros três não têm cor, não são descritas. Só o da mula tordilha “roba mi alma”, “és mi marío, mamita mia”. Só ele desperta o cuidado da cantante, pois “está llovendo en el campo, mi amor se moja, quien fuera um arbolito…”.
O eu lírico comunica à “mamita” sua predileção pelo “da mula torda” (com certeza um aguadeiro da vila, que vai a água e ao rio no grupo dos quatro muleiros). Ele é seu marido. Mas é como se advertisse à “mamita” do ciúme que tem pelo muleiro, nos versos em que pergunta “a qué buscas la lumbre / la calle arriba, mamita mía, / si de tu cara sale / la brasa viva!
Por qual dos muleiros “mamita” estaria interessada? Que fosse por qualquer dos outros, mas não pelo da mula torda. O fato é que o sentimento da “mamita” foi denunciado no rubor do seu rosto, “la brasa viva!” Outras interpretação podem ser ouvidas nas vozes de Argentinita (essa acompanhada pelo próprio Lorca ao piano), de Tereza Berganza, de Victoria de los Angeles, de Alejandra Rodriguez, da soberba Al Yussana ou mesmo de intérpretes masculinos, como Pepe Marchen e Manolo Paradas.
Tudo isso e algo mais o Douto Leitor encontra no mágico Youtube. É só digitar “Los cuatro muleros”. Se Lorca nada mais tivesse feito, o resgate dos “Cuatro Muleros” valeria por uma obra. Que forró!
*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.