“Os compositores negros não se lembravam mais da noite da senzala, limitando-se a compor música dançante”
Otávio Sitônio
Em 1943 O gaúcho Mateus Nunes gravava sua toada “Mãe Preta” nos estúdios da Continental, em São Paulo. A música foi feita em parceria com Piratini, maestro do conjunto em que tocava. Cantor, Mateus Nunes tocava contrabaixo, piano e percussão. Era negro no Rio Grande do Sul, estado onde o contingente afrodescendente é limitado, hoje, a 2% da população, formada por italianos, alemães, judeus, árabes, polacos, espanhóis e outras etnias.
O jovem músico ganhara o apelido de “Caco Velho” ainda menino, quando vendia bombons e chocolates nos noites de Porto Alegre. “Caco Velho” é um samba de Ary Barroso que o menino cantava insistentemente, como característica musical. “Mãe Preta” fez sucesso no Brasil, ganhando várias gravações, inclusive como toada-baião. Foi levada para Portugal pela cantora portuguesa Maria da Conceição, que gravou a música.
“Mãe Preta” era uma crônica da escravidão – uma das raras letras de música que abordavam o tema. Fazia apenas 55 anos da abolição da escravatura, mas os compositores negros não se lembravam da noite da senzala, limitando-se a compor música dançante ou sambas carnavalescos. A letra da toada de Caco Velho era direta e cruenta: “enquanto a chibata batia no seu amor, / Mãe Preta embalava o filho branco do senhor”.
A toada fez sucesso em Portugal e na África. Em Angola foi gravada pelo Duo Ouro Negro, do qual o brasileiro Sivuca foi maestro. Mas a letra incomodou a censura salazarista e a memória branca. O sucesso de “Mãe Preta” foi extensivo a Caco Velho, que passou uma temporada em Lisboa e, mais tarde, em Paris e na Madeira. Caco Velho fez amizade com Amália Rodrigues, que lhe pediu autorização para encomendar outra letra para “Mãe Preta”, sem implicações ideológicas.
E o poeta David Jesus Mourão-Ferreira criou “Barco Negro” para a melodia de “Mãe Preta”, grande sucesso na voz de Amália, até hoje cantado por intérpretes diversos como Mariza, Margarida Guerreiro, Kátia Guerreiro, Joana Amendoeira, os grupos Amor Electro e Maria Lua, o brasileiro Ney Matogrosso e outras vozes. A “Mãe Preta” original foi gravada ainda por Dulce Pontes, pela madrilena Dolores Pradera, o grupo Maria Lua, a brasileira Virgínia Rosa e mais intérpretes.
O grupo Maria Lua gravou as duas versões, “Mãe Preta” e “Barco Negro”, em ocasiões diferentes. Sugeri ao chefe do grupo que gravasse as duas versões numa só peça. A mesma sugestão dei ao maestro Jacques Morelembaum, quando ele trabalhava com Mariza. O maestro gostou da ideia, mas “Mãe Preta / Barco Negro”, numa versão unificada, permanece inédita.
Depois de Caco Velho ninguém mais cantou a tragédia da escravidão no Brasil. O silêncio negro só veio a ser quebrado com a chegada de Chico César, nascido no ano do golpe militar de 1964. Em suas rimas raras, Chico César denuncia o tratamento discriminatório dado aos negros pela sociedade brasileira. É o que se ouve em “Respeitem os meus cabelos, brancos” (sic), onde o discurso fica explicitado já no título.
Chico César teve oito de suas músicas gravadas por Né Ladeiras, a notável cantora da música de raiz portuguesa, que abriu espaço para a música étnica do compositor de “Mama Africa” no álbum “Da minha voz”. À sua aceitação pela diva portuguesa, Chico César somou o reconhecimento de Maria Bethânia, Chico Buarque, Daniela Mercury, Elba e Zé Ramalho, que gravaram suas canções por vezes acompanhadas pelo violão singular do autor de “As Asas”. Meio século depois de Caco Velho, o negro voltou a cantar sua verdade na poesia e nas asas do brasileiro Chico César.
*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.