Os carros têm dez metros quadrados, não é justo que levem apenas um passageiro por dez metros quadrados
Otávio Sitônio
Estão atolados, não vão pra frente nem pra trás. Atolaram as quatro rodas na lama do asfalto. Alguns, mais nervosos, emitem o relincho das buzinas. Na antiga e mística União Soviética, os carros não tinham buzina. Saiam da fábrica mudos e não havia buzinas em todas as Rússias. O país dos trabalhadores era o mais silencioso do mundo.
Um pânico paralisante toma conta das alimárias de ferro. Os carros estão parados, como os bois no curral do matadouro. Não se sabe de onde vieram, nem para onde vão. São mansos enquanto assim parados, com seus motores potentes, que não podem levá-los a lugar nenhum. Estão sucateados, os carros na cidade grande. É inútil cantar-lhes um aboio: eles não dormirão.
Os carros bravos estão presos no rio de asfalto, atolados na lama até a alma. E se houver alguém passando mal entre seus passageiros? Quando chegar no necrotério já estará podre, mesmo vivo já está fedendo. São inúteis tantos agapês, eles não saem do lugar. Em Moscou era proibido estacioná-los, para não entupir as ruas do povo. Moscou tinha o melhor metrô do mundo, melhor que o de Londres, e de graça. Os trabalhadores iam e vinham, os estudantes vinham e iam sem pagar nada, em segurança, depressa.
O pior é que os carros se reproduzem independentes de seus proprietários. Eles nascem aos milhões. Suas fêmeas são férteis, como éguas e vacas. Inundam as cidades com seus cascos de demônio, seus relinchos de demônio, sua fumaça do inferno. É dantesco. Um vereador quer os carros castrados, como forma de reduzir sua população. Uma boa ideia, finalmente o edil teve uma ideia.
Não é justo proibir os de placa par ir às ruas no mesmo dia dos de placa ímpar. Os ricos têm muitos carros, de placas ímpares e pares. Os ricos poderão trafegar, os pobres ficarão encurralados nas garagens dos apartamentos, nos cortiços, nas favelas, nas invasões, sem poder exercer seu direito constitucional de ir e vir, de expressar sua buzina nervosa.
Outro edil quer proibir os carros de circularem conduzindo apenas o motorista. Em Xanadu é proibido carro ir à rua conduzindo apenas o chofer. Há quem trapaceie levando um manequim de carona, mas o carro é apreendido, o brevê cassado.
Os carros têm dez metros quadrados, não é justo que levem apenas um passageiro por dez metros quadrados; os ônibus têm quarenta, os ônibus transportam mais de cinquenta viventes, mais de um passageiro por cada metro quadrado. Em Londres são mais, os ônibus são assobradados.
E outro edil quer um rodízio de cores. Há dias para carros azuis, outros dias para carros vermelhos, mais outro para carros pretos; dias para brancos, para verdes, para etc. Um largo espectro de proibições. De novo os ricos sairão ganhando, pois há quem tenha um arco-íris de carros. Os pobres só têm um, e com a pintura queimada. E há pobre que não têm carro de nenhuma cor, só poderá sair às ruas a pé, até o ponto de ônibus – se tiver o dinheiro do tíquete.
O edil do Partido dos Pobres quer uma faixa no asfalto só para os trabalhadores sem carros, para os desempregados sem carros, para os a pé, pois as calçadas já não são bastante pra eles. Os desempregados sem carros não tem para onde ir nem de onde vir, são os sem ir, os sem vir.
E tem o morador de rua que é morador de carro. Estaciona seu velho carro junto ao meio-fio. É lá que ele dorme, que esmola, que recebe seus amigos no banco do carona. Não paga imposto predial, não renova o emplacamento, seu carro não roda mais. Está com os pneus murchos como sua barriga. Ele é imune aos engarrafamentos, não atola no calçamento. À noite, come a sopa da caridade, atolado na vida.
*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.