Balançou o verbo como se fosse uma parlamentar experiente, de calo na língua, ou uma professora dando sua aula
Otávio Sitônio
O ano começou chuvoso. Uma sensação de manhãzinha às nove horas, que no Sertão chamamos de “alturas”. Tomara que o clima daqui imite o de lá, aquele clima trombudo se São Paulo, com a chuva rebocando os carros rua abaixo. Aonde vão parar? Será que a Cantareira tomou água dessa vez? Coisa esquisita esse clima paulista. Chove que só, mas a Cantareira não sobe de nível, a chuva não cai naquelas bandas. Parece até o inverno do Semiárido: um inverno irregular, com chuvas precipitadas nas trovoadas de fim de ano e depois suspensas, para só chover quando a lavoura plantada murchar e morrer. Seca é isso, paulistas.
O que separa São Paulo do Nordeste? Minas Gerais. As serras de Minas, enormes e frias, cheias de minérios e de História, com seus mártires enforcados, crucificados na forca. Repare, a forca é uma banda de cruz, só que menos cruenta, menos dolorosa. Na forca se pode estrebuchar, na cruz se fica pregado, sem a possibilidade de um gesto. Um adeus sequer, morrendo a prestação, lama sabactani. A cruz é uma árvore sem sombra, um mastro sem vela, um navio naufragado no tempo que mais demora a passar, o tempo da dor.
Mas as Minas Gerais têm um pé no Nordeste, a faixa do norte que vai da extrema de Goiás até o Espírito Santo. São as terras de Montes Claros, a pátria de João Chaves, o compositor de “Amo-te muito”. Ouça essa modinha na voz de Maria Lúcia Godoy, a grande soprano brasileira, rival de Bidu Sayão. Ou mesmo no fiapo da grande voz de Nara Leão, amo-te muito. Com outra seca como essa São Paulo vira cariri. Aliás, Von Martius disse que a caatinga ia até o Rio de Janeiro. Preste atenção que nas fotos das praias selvagens do Rio se vê, ali e acolá, um cacto acenando para o tempo.
Já pedi a um amigo com tráfego nos altos escalões de Brasília para sugerir ao governo que mande traduzir a “Flora Brasiliensis” na língua geral do português. Fizeram uma tradução esquisita, em que a pessoa digita a palavra desejada e vê o resultado no computador. Mas não se lê a frase, o período. Tinha de ser bilíngue, uma banda em latim, a outra em português, como a fantasia de Nelson Ferreira (de um lado ela é palhaço, do outro é arlequim; metade é de seda, o resto é de algodão). “Flora Brasiliensis” é a maior obra que se escreveu sobre o Brasil, nos seus quinze volumes alentados. No tempo em que se estudava latim nos quatro anos do ginásio, mais três no Clássico, o texto base bem que poderia ter sido o herbário de Martius, em vez das fábulas de Fedro e dos discursos de Cícero, patientia nostra.
Por falar em discurso, durante a chuva de quinta-feira a camarada presidente fez um para ninguém botar defeito. E de improviso, ou decorado, sem recorrer ao papel. Ou será que ela estava com um sopro eletrônico no ouvido? Dona Dilma fez um balanço dos governos da esquerda e anunciou o que pretende fazer. Ela tinha o queixo duro, mas no discurso de posse soltou a voz. Só não gostei da última frase, pois um executivo norte-americano disse algo parecido na segunda guerra mundial, algo como “o difícil faremos agora, o impossível é uma questão de tempo.” O assessor podia ter dado o crédito ao gringo.
A comandante nem se emocionou. Balançou o verbo como se fosse uma parlamentar experiente, de calo na língua, ou uma professora dando sua aula, ou uma advogada fazendo sustentação oral. Falou melhor de que Lula, um dos maiores oradores do Brasil, com um poder de convencimento do outro mundo, do primeiro mundo. Ela não se emocionou nem quando relembrou que é uma sobrevivente da História, pois conheceu o cárcere e a tortura onde tantos morreram. Depois sobreviveu à doença brava, da qual nem todos escapam. A comandante desceu da cruz duas vezes; os soldados pregaram mal os cravos nas mãos, nos pés, no coração da guerrilheira.
*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.