Os nomes das empresas escravistas não podem ser revelados na Lista Suja do Trabalho Escravo, por decisão do STF
Otávio Sitônio
Em 28 de janeiro de 2004 três fiscais do Ministério do Trabalho foram emboscados e pistolados no município de Unaí, em Minas Gerais. As vítimas, Eratóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Lages e Nélson José da Silva estavam investigando a ocorrência de trabalho escravo numa fazenda do nordeste de Minas, pertencente aos irmãos Antero Mânica e Norberto Mânica. Com os fiscais morreu também o motorista do Ministério, Ailton Pereira de Oliveira.
O processo se arrastou por uma dezena de anos, e não sei a quantas anda. Nesse ínterim, no dia 7 de janeiro de 2013, morreu um dos réus, Francisco Elder Pinheiro, acusado de contratar os matadores. Até 2013 ainda se discutia onde os réus seriam julgados, se em Belo Horizonte, para onde o júri fora desaforado, ou em Unaí, curral eleitoral dos acusados. Mesmo processado, Antero Mônica foi eleito prefeito duas vezes e homenageado pela Assembleia Legislativa com medalha de mérito.
No Brasil, condenados são os escravos às galés perpétuas. Seus senhores gozam de imunidade e de impunidade. Muito recentemente, com base na investigação de auditores do Trabalho, o Ministério Público acusou grandes empreiteiras de praticar trabalho escravo ou em condições análogas à escravidão. Mas o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de despacho do ministro plantonista Ricardo Lewandowski, proibiu a divulgação dos nomes das empreiteiras, atendendo petição da Associação Brasileira das Incorporadoras (Abrainc), a poderosa entidade de classe das empreiteiras.
Quedou obsoleto o decreto da Princesa Isabel, de 13 de maio de 1882, com sua sentença simples e lapidar – “fica abolida a escravidão no Brasil”. A memorável frase de Silva Jardim caducou ao longo dos anos, desaguando num “apartheid” jurídico, dando lugar a permanência de uma classe sem direitos, a dos escravos, como definiu LeRoy Jones: “o escravo é o trabalhador sem direitos”.
O despacho do ministro passa por cima de dois princípios jurídicos: o da publicidade e o da transparência. Bastante seria o princípio da publicidade, que garante o acesso de qualquer do povo ao processo judiciário. Exceção se faz às ações da vara de família, para se preservar a honra das partes, pois nela é frequente a lavagem de roupa suja, com acusações de traições, chifres e cangalhas. Mas o povo não é corno. Recente é a extensão desse segredo de justiça aos processos contra o poder público, quando esse é que deveria ter a maior publicidade, mãe da transparência.
Agora a acusação da prática de trabalho escravo por empreiteiras ganhou a blindagem do segredo de justiça, como se fosse uma briga de marido e mulher, em que as partes tenham se chifrado reciprocamente. Ou de alguém que suplique à justiça uma investigação de paternidade para receber pensão ou herança. Trabalho escravo é algo mais grave, trata-se de um retrocesso histórico. O Brasil foi o último país das Américas a abolir o cativeiro, e ainda há quem resista ao fim da escravidão.
No seu profético livro “1984”, George Orwell anunciava: “os proles, se de alguma forma tivessem consciência de sua própria força, não teriam necessidade de conspirar. […] Até que se tornem conscientes, nunca se rebelarão, e até que se rebelem, não se tornarão conscientes.” Vinte anos antes da data título de Orwell, ocorreu no Brasil o terrível golpe de 1964, em que as conquistas democráticas e sociais foram sucateadas e transformadas em chorume histórico. Vinte anos depois de 1984 ocorreu o martírio dos servidores do Trabalho, numa rotina de fiscalização nos sertões de Minas.
O que o número quatro tem a ver com isso? Em 2014, trinta anos depois da distopia de Orwell, ressurge o fantasma da escravidão no caso das empreiteiras. Mas os nomes das empresas escravistas não podem ser revelados na Lista Suja do Trabalho Escravo, por decisão do STF. Pior para elas, pois a suspeita recai sobre todas as casas do ramo.
*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.