“O tempo foi mais cruel com ela de que a morte, pois lhe matou a beleza em vida”
Otávio Sitônio
O mundo ficou mais feio sem Anita Ekberg, a musa viking, a deusa do amor Frigga, ou Gerda, a deusa das almas perdidas, ou Freia, a deusa do sexo, deusa das longas noites geladas do antigo Norte. No filme “A doce vida”, a deusa se chamava Sylvia. Seria uma premonição de Fellini sobre a futura rainha da Suécia, a teuto-brasileira Sílvia, bela como Anita?
Para ser Miss Suécia é preciso ser linda, bela e bonita. As suecas são luminosas como a aurora boreal. Câmara Cascudo se escandalizou com um concurso de miss feito na Suécia, em que as candidatas desfilaram peladas. Uma boa ideia, pena que não pegou no resto do mundo. Cascudo reporta o fato no prefácio do livro de Carlos Augusto Pinto Galvão, “A modinha norte-rio-grandense”.
O livro é resultado de uma formidável pesquisa, em que o autor reproduz letras e partituras de mais de trezentas modinhas. Leitura obrigatória para quem se interessa pela história da música popular brasileira.
Eu não sabia que o evento das misses tinha sido tão bonito assim, a ponto de escandalizar Cascudo, o sociólogo de Natal, um lugar tido como pra frente. Por influência dos norte-americanos, que para lá vieram de passagem para a guerra, dizia-se no meu tempo. Os jovens que iam morrer aproveitavam seus últimos dias vivendo as belezas e as beldades de Natal.
Por que o Correio Sul amerissava em Natal e não em Paraíba, se é aqui o ponto mais oriental das Américas, onde o sol nasce primeiro? Respostas para o redator. Por que os gringos fizeram a base aérea em Parnamirim, e não na Paraíba, a contragosto de Getúlio, que era germanófilo?? Ele e a hierarquia das forças armadas.
Como eu ia dizendo, o mundo ficou menos sem Anita, a esfuziante Sílvia de “A doce vida”. Você tem cara de quem não viu o filme, que é de 1960. Nove entre dez dos meus leitores eram muito jovens em 1960, nem podiam ver o filme que era impróprio para 14, quiçá 18. Anita era bela demais para ser censura livre, com seu busto de fiorde. Inda mais tomando banho na Fontana di Trevi.
A musa não estava nua, como as misses que escandalizaram Cascudo; estava vestida até demais num longo preto, tomara-que-cáia, que destacava e realçava seu busto de deusa. Ela chamou Mastroiani para o banho, “Marcelo, come here”, e ele foi, só tirou os sapatos, entrou na água de paletó e gravata. Você tem cara de quem não viu. Pois chame na Internet e veja. Tem mais um gatinho com quem ela brinca, todos queríamos ser aquele gatinho. Os mais pretenciosos queriam ser Mastroiani. Para mim, ser qualquer dos dois servia.
Fico pensando nessa história do Juízo Final e da ressurreição da carne. Com certeza Anita Ekberg será ressurreta e glorificada no Dia do Juízo. Mas, como ela ressuscitará? No esplendor de A Doce Vida? Ou no estado em que desencarnou? Pergunto ao teólogo Ernando Teixeira, ilustre leitor desta coluna. Deus não é burro para ressuscitar Anita no estado em que se encontrava nos últimos dias. O tempo foi mais cruel com ela de que a morte, pois lhe matou a beleza em vida.
Seria injusta a ressurreição de Anita Ekberg com a decrepitude dos últimos anos, depois dos oitenta, as rugas velhas, a saúde final. Deus não é burro, é onisciente, não vai fazer uma barbaridade dessas. Recomendo a Deus a leitura do poema de Augusto Frederico Schmidt, “Destino da beleza”. Foi no tempo da doce vida, quando eu queria ser o gato de Anita Ekberg. Ela dizia “came here”, e todos queríamos ir para dentro da tela e da fonte, de paletó e tudo, íamos de paletó para o cinema e as fontes. “Para onde vai, qual o destino da beleza”, depois do fim? O poeta Schmidt pergunta, acho que no livro “Pássaro cego” (1930). Eu era muito novo quando li. Vale a pena procurar; você tem cara de quem não sabe para onde vai a beleza.
*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.