“Na primeira vez que ouvi o bloco dos caboclinhos ensaiando, tive medo. Pensei que eram índios mesmo. Eu era apenas um curumim”
Otávio Sitônio
Lembro-me de Quebé vestido de mulher e sua mãe arrancando as latas de manteiga usadas como próteses de peitos, a cara do meninão toda pintada, talvez com a maquiagem materna. As pequenas, de duzentas gramas, não estavam de todo deslocadas, pois manteiga é feita de leite, e leite vem de peitos. Essa a primeira lembrança que tenho do Carnaval. A mãe de Quebé esbravejava, não queria o filho homem naquela fantasia, mas ele ria, nós ríamos com a raiva de Dona Nilza. Depois dessa brincadeira se passaram mais de sessenta anos.
Havia mais. No oitão, na beira do bosque da Bica – na rua dos Bandeirantes –, desfilavam moleques batendo em latas, cada um mais sujo que os outros, as caras pintadas como a de Quebé. Eram chamados “caretas”. Não cantavam, só faziam uma percussão anárquica, sem ritmo. Eu não entendia o porquê daquela zoada, daquelas roupas, mas achava graça.
A ursa até que fazia medo, vestida naqueles panos felpudos, a cintura amarrada com uma corda, a molecada batendo nas latas, de porta em porta na esperança de arranjar algum dinheiro para se brincar o Carnaval. Quando se estava liso, dizia-se que naquele ano ia se sair “à la ursa”, e não “ala ursa”, como alguns dizem hoje.
Os carros desfilavam organizadamente no chamado “corso”, pelas ruas do centro da cidade. Pagavam uma taxa, não sei se à Prefeitura ou ao Departamento de Trânsito, para ter o direito de entrar na fila boba. Tirava-se o bojo do escape, colavam-se confetes na pintura do carro, pintavam-se as caras como Quebé. A turma do corso fazia o carnaval dos ricos, naquele tempo só os ricos tinham os carros tão caros.
Alguns foliões alugavam caminhões e saíam fantasiados em blocos, alojados nas carrocerias. Era assim que os Piratas de Jaguaribe iam literalmente para o corso, vestidos de preto, espadas de pau na cintura, a “July Roger” drapejando a caveira e suas tíbias para a plateia à beira do trajeto.
Na primeira vez que ouvi o bloco dos caboclinhos ensaiando, tive medo. Pensei que eram índios mesmo. Eu era apenas um curumim. Eles saíam a pé pelas ruas do centro, tocando seus pífanos e tambores, dançando suas fantasias de penas de peru e pavão. Eram o que havia de mais bonito no Carnaval; naquele tempo, as mulheres ainda não saiam nuas.
O Carnaval era diferente, tudo muda com os tempos. O Carnaval de rua não tem mais a espontaneidade popular, foi organizado na forma de grandes blocos “puxados” por trios eletrificados. Acabou-se o Carnaval de clubes. A festa dos ricos faliu. Outrora, as crianças da classe média brincavam na matinê do Clube Astrea, bem situado na antiga e mística Rua do Tambiá. O dancing era um grande terraço aberto à ventilação. A frente norte dava para uma alameda de fícus, preferida pelos namorados que dançavam dois a dois, rostos colados, as marchinhas e os frevos da época no ritmo de seu corações: “se você fosse sincera, / ô ô ô, Aurora…”
Ficamos adolescentes e passamos a tomar “astreano”, um coquetel parecido com o “rabo de galo”, possivelmente à base de cachaça e do vermute Cinzano. O bar do clube servia a beberagem sem revelar sua fórmula. O Clube Cabo Branco ainda ficava em Jaguaribe, lá para as bandas do prado, havia prado, corridas de cavalos. O Cabo Branco também promovia matinês infantis, mas não tão concorridas como as do Astrea. E havia as matinais infantis da AABB – a Associação Atlética Banco do Brasil.
Não estou falando do Carnaval dos adultos; este é de ontem, não é de anteontem. Este não passou pelo meu oitão, moleques batendo latas, o povo dançando à la ursa.
*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.