“Querem a volta da ditadura que encobria tudo, principalmente cadáveres”
Otávio Sitônio
Nos duros tempos da Ditadura as passeatas eram reprimidas a casco de cavalo, dente de cachorro e um cassetete tamanho família – que levava o nome de “fanta,” em alusão ao refrigerante comprido que o truste lançou na praça. Não sei quem homenageava quem: se o cacete louvava a gasosa, o se a laranjada louvava o cacete. Era um bruto bastão, daqueles de matar bode. Se pegasse na cabeça, matava.
Houve uma passeata organizada pelas mães dos estudantes de classe média, em protesto contra o aumento das mensalidades escolares. Quando as senhoras passeavam seus cartazes, surgiu o choque da polícia. Pau nelas, fanta nelas. As madamas puseram-se em fuga, estimuladas pelos cassetetes da polícia. Duros tempos aqueles. A gente tinha que engolir em seco e em silêncio, cabeça baixa.
Numa passeata a polícia matou a coronhadas de fuzil o estudante Aloísio. Esmagaram sua cabeça. Foi ali, na esquina da Academia Paraibana de Letras, bem na calçada do Colégio Diocesano Pio XI. Proibiram velório e missa, nenhuma notícia nos jornais, as rádios em silêncio. Nem os santinhos foram permitidos distribuir. Aloísio estava noivo, ia se casar. Beatriz ainda hoje abafa e amarga sua viuvez.
Bia passou uns tempos no cárcere da ditadura, com um holofote aceso na cara. Queimaram suas retinas, quase ficou cega. Há muito custo, depois de perambular pelos quarteis, o general achou a filha e levou-a para casa. Era um expedicionário, fora para a Itália com a FEB. Conheci o velho, gentilíssimo, um dos homens mais educados que já vi. Nem parecia um militar. Bia viu um dos companheiros ser trucidado pelos carcereiros. É melhor não contar.
Naqueles tempos tudo acontecia e nada se sabia. Ninguém dava conta do que se processava nos corredores do governo. Foi quando houve a venda das minas de ouro de Princesa, no Sertão da Paraíba. Eram minas seculares, exploradas pelos nativos daquelas serras, principalmente nos anos de seca, quando não tinham o ouro branco do algodão para remédio de sua pobreza.
Aquelas antigas minas de ouro, que Pedro Vaz de Caminha não citou na sua carta para El Rei, foram requisitadas pela Companhia de Desenvolvimento de Recursos Minerais – CDRM. Seus direitos foram vendidos a Pedreiras Valéria, do grupo Odebrecht, por vias de uma licitação especial, que ninguém viu publicada. Agora, a Odebrecht foi incluída no grande escândalo da Petrobras.
Uma das coisas mais louváveis no atual governo é a desenvoltura com que o povo ocupa as ruas para protestar, não se sabe bem contra o quê. As pessoas desfilam vestidas de verde-amarelo – o verde Portugal e o amarelo Áustria –, para lá, para cá, para ali e acolá, sem serem molestadas pela polícia, que a tudo assiste com seus cassetetes embainhados. Não fazem discursos, não distribuem manifestos. Algumas pessoas portam cartazes pedindo a ditadura de volta.
Vê-se pela televisão um cortejo sem defunto. Quando o presidente João Pessoa morreu, levaram a múmia até o Rio de Janeiro. Em todo porto, o cadáver descia para cerimônias subversivas: passeatas, comícios, missas, visitações. Tudo pensado por Assis Chateaubriand, o guru da comunicação. Dessas exéquias nasceu o Golpe de 1930, contra o pensamento do presidente morto.
Na democracia da presidente Dilma falta um cadáver. Mas sua repressão não reage, ninguém apanha nem é preso. Cantam o Hino Nacional, a polícia em posição de sentido. Protesta-se contra a democracia que descobriu os podres da Petrobras. Querem a volta da ditadura que encobria tudo, principalmente cadáveres. Assim pedem os cartazes. É difícil compreender o povo.
*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.