Rachel repetiu o gesto das moças, que naquele tempo não dançavam com militares nem com policiais
Otávio Sitônio
Sem querer, a menina foi protagonista de um dos momentos notáveis da resistência à Ditadura Militar de 64/88 no Brasil. O fato ocorreu em setembro de 1979, em Belo Horizonte. Pesavam os anos de chumbo da Ditadura autodenominada de Revolução Redentora. Uma que não foi revolução, mas golpe; outra que não redimiu ninguém, mas inflacionou a inflação e corrompeu a corrupção. A justiça nada valia, a imprensa nada dizia, ninguém nada sabia.
Mas estávamos falando na menina de Belo Horizonte, Rachel Clemens Coelho. Ela pediu à mãe para ir ver o presidente da república (era assim que se chamavam os ditadores), com quem o pai ia almoçar no Palácio do Governo, o da Liberdade. O pai de Rachel era do stablishment, almoçava nos palácios com os donos do poder. Aí a menina passou pelos seguranças e se aproximou do general-presidente João Baptista Figueiredo. O gorila estendeu a mão para Rachel, mas a menina não correspondeu ao gesto. O ditador ficou com a manopla estendida no vazio.
A foto de Guinaldo Nicolaevsky (+ 2008) mundo, publicada em vários jornais e revistas, e o gesto (ou não gesto) da menina foi interpretado como manifestação de desobediência civil e de resistência à Ditadura. Rachel Clemens tinha apenas cinco anos e já fazia par a outras revolucionárias, como a também mineira Dilma Roussef. Era o tempo das guerrilhas urbana e rural, e surgia uma nova forma de resistência: a do jardim de infância, onde militava a camarada Rachel. Via-se isso na foto da menina burguesa deixando o ditador empulhado. Rachel repetiu o gesto das moças, que naquele tempo não dançavam com militares nem com policiais.
Criança tem dessas coisas. O flagrante lembra um filme de propaganda comemorativo do centenário da imigração italiana no Brasil, produzido mais ou menos na época. A locução, em off, dizia qualquer coisa sobre o evento, enquanto a câmara focava um homem e um garoto. Aí o pai assumia o discurso e dizia que o menino sabia falar italiano. E mandava o pirralho falar. Mas o garoto não abria a boca. “Fala italiano”, dizia o pai, “fala italiano”. O menino emburrava, não falava italiano nem português, nada. “Ele não fala porque não quer, mas fala italiano”. Corte.
Não sei se o filme do centenário da imigração italiana e seu menino emburrado foi inspirado no episódio de Belo Horizonte, em que Rachel bateu o pé, mesmo diante da forca, digo, força. Pode ter sido coincidência, mas também pode ter sido resistência. Não só da menina, mas do roteirista do filme. Era um tempo em que não se podia falar, nem português nem italiano, como na ditadura de Mussolini. O menino não falou, nem tampouco a menina, e Fig (era esse o apelido do general) ficou com a mão da espada no ar.
Já fiz isso uma vez, com um governador. Eu não era mais menino. Estávamos num restaurante, e ele vinha de mesa em mesa, dando a mão aos eleitores. Estirou a mão para mim, a mão da banana e da caneta. Ficou sobrando. Faltou um fotógrafo, quem sabe o de Palácio. “Burra Preta”, eu já lhe disse que não tirasse retrato quando eu estivesse de copo na mão”, recomendou Excelência. “Assim, Governador, eu não vou tirar seu retrato nunca”, ripostou o atrevido.
Rachel Clemens cresceu e se formou em Comércio Exterior. Casou-se, teve filha, fez pós-graduação no Instituto Tecnológico da Aeronáutica. Trabalhou em diversos países. Mulher inteligente, pois é difícil entrar no ITA. Esta semana sentiu-se mal, foi para o hospital, mas não sobreviveu à parada cardíaca. A guerrilheira do jardim era mulher bonita, Minas é rica de guerrilheiras bonitas. Está numa trincheira do Parque da Saudade, em Juiz de Fora. Continua lutando, a revolução é permanente.
*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.