Agora Lucy está com nova banda. A música perdeu para a Medicina, pois as duas irmãs preferiram ser médicas
Lucy Alves cantou os primeiros números com um salto 15, as pernas ficaram ainda maiores. Por volta da quinta ou sexta parte, ela foi para os bastidores – enquanto cedia o palco para o Forró Balancê, um grupo local com predominância do elemento feminino (como era o Clã Brasil). Em pós, voltou sem os saltos, descalça, com os pés no chão, para dar continuidade ao seu espetáculo de raiz regional, made in Misericórdia. É assim que prefiro ouvir a música de Lucy Alves, com matiz da Misericórdia de ontem, Itaporanga de hoje. Como meu pai e meu avô chamavam.
Agora Lucy está com nova banda. A música perdeu para a Medicina, pois as duas irmãs preferiram ser médicas. Com isso o conjunto ficou desfalcado de sua flautista e de sua zabumbeira, que também tocava violino – como Lucy também toca, quando quer. Ela toca quase tudo, em procura de vinte instrumentos: sanfona, fole, piano, teclado, escaleta; violão, baixo, violino, viola, rabeca, guitarra baiana, cavaquinho, bandolim, banjo; pandeiro, triângulo e zabumba; e a própria voz.
Lucy canta e toca sanfona muito bem; é mulher de dezessete instrumentos, por enquanto. Pois ainda não fez trinta anos e vai aprender outros instrumentos que sejam necessários, e se aperfeiçoar nos que já domina, como domina os homens com seus sortilégios de moça bonita. Mas nem precisa aprender outros instrumentos, a gaita piano é bastante para seu repertório que vai de Gonzaga a Dominguinhos, Jackson, Vital, Zé Ramalho, Sivuca.
De quebra, ela toca a gaita-botoneira-de duas-conversas, como chamam os gaúchos ao fole de oito baixos de seu bisavô Dedé do Cantinho. A música está no seu DNA. Meu avô Gratulino também tocava um daqueles, nos forrós de Misericórdia. Papai me disse que lhe curaram uma impigem (Tinha corporis) no couro da barriga, quando era menino, friccionando limão e pólvora. Ele chorou, pois ardeu. Aí meu avô pegou o fole pé-de-bode e tocou para o choro parar.
Não sei se Lucy e suas irmãs doutoras, zabumbeiras e flautistas sabem desse poder sedativo do fole. O pé-de-bode do meu avô Gratulino era igual à cabeça-de-égua que Dedé tocava, e que de vez em quando Lucy leva ao palco. Um fole pode ter oito baixos (ou mais) e muitos nomes: gaita botoneira ou de duas conversas no Rio Grande do Sul (pois cada tecla emite duas notas diferentes, ao abrir e fechar do fole), cabeça-de-égua em Minas Gerais, pé-de-bode no Nordeste. Porque cada pé do bode tem o casco dividido em dois; vezes quatro fazem oito.
Eu achava o Clã Brasil um conjunto musical único neste país de Carlos Gomes, Villa-Lobos, Zé Siqueira, Gonzaga, Zé Dantas, Sivuca. Um regional formado por zabumba, percussão, triângulo, pandeiro, sanfona, flauta, violino, violões, cavaco, bandolim etc. E as vozes de Lucy e de sua mãe e irmãs, e dos caras. Mas as manas optaram pela Medicina, o que se há de fazer.
Lucy voltou à tona com banda própria, formada por uma seção rítmica de baixo elétrico, bateria, percussão, teclado e um cavaco; um violão de seis; e ela no acordeão. Belo o baixo acústico decorando o palco. O pai Badu voltou a dar uma canja no violão de sete. E ela toca sua inseparável sanfona, com direito a bandolim e cavaquinho elétrico mais distorcedor. Ouve-se ainda um violão de seis. A sessão rítmica ganhou, mas a sessão melódica perdeu – pois o violino e a flauta não foram substituídos. Como brinde, a canja da cantora Khristal e a dos Gonzagas.
Lucy e sua nova banda foram aplaudidas de pé no último sábado, num Teatro Paulo Pontes completamente lotado. Um público mais de adultos que de jovens esgotou logo as meias-entradas. Público estranho ao instrumental eletrônico da nova banda, mas que aplaudiu assim mesmo. Cabeças brancas, como eu e sua avó, Dona Elizete, que estava ao meu lado aplaudindo a neta. Outra feliz da vida era a tia Ilka, doutora médica como as sobrinhas. Família de doutores, como o pai e engenheiro Badu, e a mãe e matemática Morena. Ela mesma, Lucy, doutora em sanfona pela UFPB.
Tantas doutoras que o palco cedeu duas para o hospital. Os que vão viver agradecem.
*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.