A rapadura

Morais já anunciou publicamente que fará a biografia de outro paraibano. Mas mantém o nome do biografado em segredo

Otávio Sitônio Pinto

(PB/13/12/15) Olho para o relógio na parede e vejo que são 3:10. Como no filme de Delmer Daves, estrelado por Van Heflin e Glenn Ford, Galante e sanguinário (3:10 to Yuma). Valeu sua primeira versão, com indisfarçável influência de Matar ou morrer (High noon), a obra prima de Fred Zinemman, em que a ação tem a minutagem do filme: o trem e os bandidos chegando pontualmente ao meio-dia, para o acerto de contas com o xerife (leia-se Gary Cooper).

Depois fizeram outros filmes no rastro de High noon, o trem sintonizado com os passos do xerife que não achava ninguém na cidade para lhe ajudar a enfrentar os fora da lei. Gosto de olhar a hora em que começo a crônica, ou fazer outra coisa. De vez em quando coincide de ser 3:10 (to Yuma), na sua antiga versão (o remake não está no nível do original). Fizeram Punhos de campeão, o boxeador apostando sua carreira contra os minutos da luta e os empresários corrutos.

Tudo a um só tempo, filme e ação. Mais recentemente fizeram um seriado de TV na linha desses filmes, o tempo da ação e do filme sincronizados. Em Chatô, o Rei do Brasil há algo semelhante. O personagem parece não sofrer a erosão do tempo, vou ver outra vez. É filme para se ver outras vezes. Sexta-feira houve um debate sobre o filme, no auditório do Hotel Sapucaia. O lançamento do filme ocorreu na sala grande do Cine Manaíra.

Foi o evento maior do Fest-Aruanda Ano X, o festival paraibano de cinema que vem crescendo ano em pós ano. Vai chegar ao tope do Festival de Cannes, ou de Berlim. O filme Chatô, o Rei do Brasil, dirigido e produzido por Guilheme Fontes, é uma adaptação da biografia homônima escrita por Fernando Morais. O escritor escolheu as biografias como o gênero de seu trabalho. Primeiro foi a biografia de Cuba, com A Ilha; seguiram-se Olga, Chatô, O Mago e outros best-sellers.

Morais já anunciou publicamente que fará a biografia de outro paraibano. Mas mantém o nome do biografado em segredo.

Chatô foi um dos grandes nomes da História Moderna do Brasil, ele mesmo um dos que modernizaram o País com recursos da burguesia do eixo Rio-São Paulo, de quem sabia extrair o dinheiro para a construção de museus de arte, postos de puericultura, fazendas experimentais, aero-clubes que formaram uma geração de pilotos para o continente brasileiro, e seu império da imprensa, quiçá o maior do mundo, no modelo de William Randolph Hearst, o cidadão Kane.

O Rei do Brasil teve papel decisivo nos fatos de 1930. Foi dele a ideia de levar-se o cadáver do presidente João Pessoa de porto em porto, até o Rio de Janeiro, o cadáver do presidente como porta-bandeira da conspiração também morta, mas assim resgatada. O papel de Chatô poderia ter sido outro, se o presidente João Pessoa tivesse acatado o apelo de Zepereira de expurgar da chapa também o deputado Carlos Pessoa (primo legítimo do presidente), e substituí-lo por Chatô.

Esse detalhe foi um segredo da família Pereira Lima, que nem mesmo Chatô sabia – ele que sabia tudo. Tivesse o nome de Chatô sido aceito por João Pessoa como alternativa para sanear a chapa, a tragédia da luta de Princesa e do Golpe de Trinta não teria acontecido. Meu tio e coronel Zepereira sabia o que estava propondo: à época, Chatô já era um nome nacional, conterrâneo de João Pessoa, ambos nascidos no brejo de Umbuzeiro, pátria natal também do presidente Epitácio Pessoa.

Conheci as veredas de Umbuzeiro, pois fui agente-fiscal nas quebradas daquela serra. Assim como conheci Chatô, pois, já na adolescência, era seu leitor diário. Lia o cidadão Chatô ainda em jejum, fumando o roliúde sem mesmo tomar um gole de café, tal minha ansiedade em ver o texto. Chatô era um dos maiores articulistas do Brasil. Daí minha estranheza, com a qual concordou o diretor Guilherme Fontes, de não ver nenhuma referência no filme à cara do intelectual Chatô.

Seu texto era sarcástico mas sempre alegre, zombeteiro. Veja-se: depois de alfinetar Dom Hélder Câmara com a imputação do arcebispo de Olinda e Recife querer empalmar a presidência da república, Chatô fechou o artigo com esta chave-de-ouro “tal a rapadura que ele quer lamber”.

*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.

Comentários (1)
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  • Geysy buxen

    Uma verdadeira aula! Uma leitura interessantíssima.