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13
mar
2015

“Ser cangalheira e cangaceira nunca foram paradigmas de comportamento das mulheres sertanejas”

Otávio Sitônio

O dia das mulheres passou, com suas homenagens de sempre. Eu não queria que passasse. O que seria do mundo sem a manhã das mulheres, sem a tarde das mulheres. Elas iluminam as manhãs, dão às manhãs o seu aconchego de companheiras. As madrugadas são mais frias que as noites, mas existem as mulheres. Há poucos minutos a mulher me chamou para fazer crônica. Ela faz isso nas segundas, quartas e sextas, nas frias manhãs. Incorporou-se a meu calendário, a meu tempo.

Se eu fizer essa crônica na noite o domingo, vou passar a segunda desorientado, sem saber qual dia é do mundo. É como se minha bússola orgânica, que é também relógio, perdesse seu ímã e girasse, à toa, a agulha de marear. Por essa e outras, preciso que o dia das mulheres não passe. Nem a tarde, véspera das noites. A tarde passa e vem a noite das mulheres. Esta sim, é que é mesmo das mulheres. Elas povoam o silêncio com seu gesto de estrela. Desde menino durmo na rede, mas sei e sinto que a mulher está ali, na planície da cama, entre as estrelas em flor.

– Está na hora da crônica –, acorda-me a voz da musa, secretária, governanta, e também mulher, que me dá o desjejum das madrugadas. Pode passar? Primeiro passe minha vida, impossível sem a musa do cotidiano.

Por isso, portanto, são mais que merecidas as homenagens a essa nação de mães e companheiras. Mas há comparações que soam mais como desomenagens.

Não aceito que se dê patente de revolucionárias a maia dúzia de bandidas que assaltaram ontem o pavor de nossa história, em bandos de cangaceiros. Dona Dilma, por exemplo, não pode ser comparada à Maria Bonita, a Lílite de Lampião. Cangaceira não é guerrilheira. A mulher do salteador, do ladrão, do assassino, do chefe do bando de celerados que aterrorizou o Nordeste, não pode receber as estrelas de capitaina (sic, Luís de Camões diz assim) do exército do povo.

Dadá de Corisco não pode ser equiparada a Elizabete Teixeira, a viúva de João Pedro. Nem mesmo que Dilma e Elizabete se digam iguais das bandidas. Corisco, o Diabo Louro, era um dos mais perversos do bando. Como diria o poeta João Cabral: “dizendo-se cangaceiro se terá dito tudo” (ele não disse, mas poderia ter dito; por isso, botei as aspas). E a mulher de Corisco será sua sócia.

O bando de celerados estuprava, castrava, sequestrava, extorquia, roubava, matava, ferrava, queimava (Zé Baiano ferrava na cara as mulheres que usassem saia curta). Não eram guerrilheiros de uma luta de classes, pois não assaltavam aos ricos, que podiam se defender. Esses tinham armas e gente. A classe média rural é quem mais sofria. Não roubavam aos pobres porque esses nada tinham, só as filhas e mulheres. Elas pagavam com o corpo a pobreza dos pais e maridos.

Qual o heroísmo desses bárbaros atentados? Qual foi o cabra de Lampião perseguido pelo patrão? Cabra nenhum. Todos os chefes de bando, no Nordeste, eram proprietários rurais. Além de sua origem senhorial, Lampião era pecuarista – tinha gado em várias fazendas do semiárido, criado no regime de vaqueirice por fazendeiros amigos. Antônio Silvino era senhor de engenho.

Os apologistas do cangaço consideram uma atitude revolucionária o fato de Maria Bonita ter largado o marido para viver com Lampião para saquear o mundo. Ser cangalheira e cangaceira nunca foi paradigma de comportamento das mulheres sertanejas. A guerrilha é opção muito diferente da cangalha e do cangaço. Margarida Maria, a líder sindicalista, não tem nada a ver com essa patifaria; não pode ser comparada com tal escória.

Elizabete, Dilma, Margarida, Zuzu Angel, Cida Ramos, essas são revolucionárias de ontem e de hoje, guerrilheiras de sempre. Não merecem a desomenagem de serem comparadas com bandoleiras que roubavam dos pobres para dar aos ricos, elas mesmas ricas em fuga permanente, pois não tinham coragem para enfrentar volantes em luta aberta polas ralas e raras sombras das caatingas.

*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.


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